Acordamos cedo. Trabalhamos até tarde. Não temos paciência para o povo que demora para atravessar a rua enquanto estamos parados no carro. Não sabemos o nome do vizinho. Às vezes, mal respondemos um ‘bom dia’ no elevador. Em outras, não respondem ao nosso.
Porém, ganhamos bem. Compramos o lançamento da marca mais cara de celular e trocamos de veículo quase que anualmente. Temos menos amigos, mas somos felizes nas redes sociais.
Será que o desenvolvimento nos faz esquecer de alguns valores?
Explico. Ao chegar no Myanmar, país simples, pobre e tecnologicamente menos desenvolvido que o Brasil, tive várias experiências bonitas.
Estava na Shwedagon Pagoda (em Yangon), o templo mais importante do país, quando uma senhora me pediu para tirar uma foto dela em frente à torre principal. Para constar, tal torre tem a parte superior coberta em ouro e, dizem, abriga cabelos de Buda.
De óculos com armação metálica e vestindo uma blusinha amarela, a mulher, na casa dos 60 anos, me alcançou o seu o celular e se posicionou. Me agachei e tirei algumas fotos. Ao vê-las, Jasmine me pediu para tirar mais algumas, dessa vez de outros ângulos. Disse não ter gostado dela própria nas imagens anteriores.
Com as últimas fotos aprovadas, foi a minha vez de pedir para que ela fizesse o mesmo por mim. Vestindo um longyi* por cima do calção, igualmente me coloquei em frente à torre.
Ao me devolver o celular, a mulher perguntou a minha nacionalidade e o que eu estava fazendo no Myanmar. Contei que estava viajando há um tempo e que conhecer a Ásia era um sonho antigo, muito por causa da minha fascinação por templos budistas. Então, Jasmine me deu uma pequena aula. Enquanto caminhávamos, ela me explicava o propósito das principais construções do lugar.
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Ao mesmo tempo, eu emendava perguntas sobre a situação do Myanmar, país que, desde 2010, vivia uma transição do regime militar* para a democracia, a qual nunca foi plena.
Depois do ‘tour guiado’, Jasmine perguntou onde eu iria. Eu disse que pegaria um ônibus até o templo de Chaukhtatgyi, que abriga uma imagem enorme de Buda deitado. Então, me perguntou se poderia ir comigo, pois gostaria de ir até o local para fazer as suas preces. Fomos em táxi, o qual ela fez questão de pagar, mesmo diante da minha insistência em, pelo menos, dividir.
Já no outro templo, continuamos a conversa. Professora aposentada e com ótimo inglês, Jasmine me falou dos planos não concretizados de morar em outro país. Me disse não saber ao certo o motivo de nunca haver tentado.
Logo depois, nos despedimos. Agradeci pela companhia e peguei um ônibus de retorno à região central, onde estava hospedado.
Foi bonito. Algo simples, mas que me mostrou o quanto parece estarmos nos ‘desacostumando’ com certas questões do dia a dia, como gentileza e querer ajudar o próximo. Me senti tão bem que resolvi compartilhar a história no Instagram. Aí, uma amiga me comentou em privado: “é estranho, né, Adri, como coisas que deveriam ser normais nos emocionam. Isso porque é tão raro…”.
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Dias depois, dessa vez em Inle Lake, no interior do país, uma menina da Inglaterra, a qual estava no mesmo hostel que eu, caiu de bicicleta e quebrou um braço. Junto com um italiano e com o recepcionista do local, a levamos ao hospital.
Chegando lá, o pessoal do hospital a recebeu. Ao ver a menina ali, sentada e chorando de dor, uma enfermeira a abraçou, a beijou na cabeça e limpou as lágrimas do seu rosto com um lencinho. Foi algo muito, muito simples, mas que me tocou profundamente. “Isso não se vê na Itália”, disse Thomaz. Aliás, eu conto mais sobre essa história na crônica “Viajar sozinho não é estar sozinho”.
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Experiência bonita também na Tailândia
Dois dias antes de conhecer Jasmine, eu ainda estava na Tailândia. Me encontrava em Mae Sot, uma cidade que está a 7 km distante da fronteira com o Myanmar. Para chegar até a imigração é preciso pegar um ônibus ou um táxi.
Por falar em ônibus, eu estava há algum tempo no ponto esperando o veículo, e nada. Para piorar, fazia um calor desgraçado, e eu tentava me esconder debaixo das folhas de uma bananeira para sofrer menos.
Então, do nada, um rapaz de uns 20 anos parou a moto em frente a mim. Usando um capacete rosado, daqueles que são abertos na região do queixo, ele perguntou onde eu iria.
Praticamente não falava inglês e, desse modo, não me entendeu quando eu disse “immigration” e “to the border”. Entretanto, quando eu falei “Myanmar”, a compreensão foi imediata.
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Logo, fez um sinal para que eu embarcasse na moto, ao mesmo tempo em que se desculpava por não contar com um capacete extra.
Mochileiro acostumado a negociar, a primeira coisa que fiz foi perguntar o preço. Enquanto eu dizia “how much” e “the price”, fazia aquele típico gesto que representa o ‘quanto custa’ na maior parte do mundo: esfregava o dedo polegar no dedo indicador.
Quando compreendeu a minha pergunta, o rapaz começou a fazer um sinal de negativo com a mão e a dizer algo como “no, no, no…”. Ou seja, ele estava indo para a mesma direção e nada queria em troca, ‘apenas’ ajudar.
Resumindo, ele me deixou em frente à imigração, me deu tchau e se foi.
Confesso que, enquanto o via dar a volta e partir, eu me sentia um pouco embasbacado. O ‘khob khun krap’ (obrigado, em tailandês) que eu disse ao rapaz não parecia suficiente. Sei lá, aquilo me pareceu tão surreal, tão distante do cotidiano com o qual estou acostumado, que tive dificuldade de digerir o que acabara de ocorrer.
Por isso é que, às vezes, me pergunto se o desenvolvimento nos faz esquecer de alguns valores básicos, como estender a mão. Aliás, nem sei ao certo se “esquecer valores” é a maneira correta de tratar o tema.
Em alguns momentos, sinto que quanto mais moderno e mais desenvolvido é o país, menor é a empatia que se tem pelo próximo. Senti isso (bastante) na Europa, onde morei por mais de cinco anos. Tanto na Irlanda, como na Espanha, era difícil receber um “bom dia” gostoso de um vizinho.
Já a amabilidade dos asiáticos, assim como da gente da América Latina, é algo lindo.
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Isso me deu a certeza de que a imersão que fiz pelo meu continente, assim como pelo Sudeste Asiático, me fez crescer muito como pessoa, me fez rever o que realmente importa para mim e o que me faz feliz no dia a dia. A experiência me fez ser mais minimalista, mais preocupado com o que me cerca e com os sentimentos alheios.
Desse modo, acredito que tirar um tempo off e cair na estrada é, também, uma maneira de desintoxicar, de rever conceitos, de se aproximar de coisas que realmente valem a pena. E, acredite, nunca voltamos ao ‘normal’. Aliás, essa é, justamente, a parte mais bonita.
* Longyi: pano cilíndrico, em forma de saia, preso à cintura por meio de um nó. Amplamente utilizado por homens no Myanmar, o longyi também está presente em países como Bangladesh, Índia e Sri Lanka.
* No início de 2021, após uma derrota retumbante nas urnas, os militares deram outro golpe de Estado no país, retornando ao poder.
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